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Carta
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Heloísa: As cartas que te envio já se vão tornando maçadoras, não é verdade? Ficas assustada, certamente, com a exuberância da tinta gasta, de papel inutilizado, e pensas, aflita, no trabalho que terás para dar resposta a tanta coisa. Não te preocupes. Não precisas consignar o que te mando num registro em que escritures com paciência o assunto, a data, o número das palavras. Escreve-me quando tiveres tempo, a lápis, num pedaço de papel de embrulho. Não releias nem emendes: o que sair sai bem. Diz-me cá. O José Leite quererá casar-nos? Eu, como te disse anteontem, não entendo de confissões, nunca me confessei. Mas declarei que estava disposto a ajoelhar-me diante de ti. Imagina que estou de joelhos. Quando te falei à janela do vigário, levava na cabeça uma lista de faltas, culpas horríveis que tenho, inconveniências de toda a espécie, capazes de demover-te se porventura houvesses acolhido a proposição que te fiz. Hesitaste. E eu, metendo os pés pelas mãos, despropositei. Não seria mau talvez, agora que estou ajoelhado a teus pés (figuradamente, é claro, porque não posso escrever numa posição tão incômoda), contar-te alguns pecados consideráveis, que um padre amável receberia por teu intermédio, atenuados ou carregados conforme as tuas disposições para comigo. Eu não seria inteiramente absolvido, é certo, mas poderia conseguir aí uns pedaços de absolvição, que me seriam úteis à alma e, com especialidade, ao casamento.
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Queres que te conte os pecados? Não todos, porque há coisas que não conto. Alguns. Se não estiveres firme no teu propósito, é provável que te desdigas e me esqueças, caso te lembres de mim. Evitarás fazer um péssimo arranjo. Se estiveres firme e me quiseres, então amarramos uma pedra ao pescoço, damos um mergulho - e vá o mundo abaixo, com todos os diabos! Aí estão os pecados: o primeiro, um dos piores, é encontrar-me sempre em lamentável estado de embriaguez. Eu não tinha intenção de contar-te este, mas como descobriste que me havia aventurado a falar-te por achar-me bêbado, resigno-me a confessá-lo. Em todo o caso fica por tua conta, e se não puderes, lá em cima, fundamentar a acusação, terás provavelmente uns meses de purgatório. Eu irei contigo, se consentirem.
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Sou leviano, inconstante, irascível e preguiçoso. Também creio que minto. Examinando o decálogo, vejo com desgosto que das leis do velho Moisés apenas tenho respeitado uma ou duas. Nunca matei nem caluniei. E ainda assim não posso afirmar que não haja, indiretamente, contribuído para a morte de meu semelhante. Não sei. Furtar, propriamente, não furto; mas todos os meus livros do tempo de colegial foram comprados com dinheiro surripiado a meu pai. Sou ingrato e injusto, grosseiro e insensível à dor alheia, um acervo de ruindades. Poderia também acrescentar que sou estúpido, mas isso é virtude. O defeito, porém, que mais me apoquenta agora é a pobreza. Como te declarei aqui, sou paupérrimo. Não duvides: encontro-me numa situação deplorável. Tenho acanhamento de expressar-me assim, mas quando te disse que fazias bem em recusar-me, pensava que não tinha o direito de trazer-te para uma vida que poderá ser má. Então para que falei? perguntarás. Falei porque não pude resistir, fui arrastado, meti um braço na engrenagem e deixei ir o resto do corpo. Falei porque estava embriagado, tinhas razão. Amava-te como um doido. E é como um doido que te amo agora. Se me fugisses hoje, eu iria viver num inferno. Mas seria bom que fugisses. Não te quero enganar. Sou muitíssimo pobre. Receio fazer-te infeliz. Entretanto, se quiseres ser infeliz comigo, procuraremos transformar a infelicidade em felicidade. Se persistes em querer-me, depois de todos os defeitos que acabo de expor, és uma santa. E a propósito de santa, em que está a ordem religiosa que ias fundar? Foi abaixo essa grande instituição? Em todo o caso tiveste uma bela idéia, e Nosso Senhor, pesando-a, talvez te conceda uns dias de indulgência.
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Preciso ir a Maceió, entender-me contigo e com a nobre parentela, mas não posso me afastar daqui agora. Enquanto não vou, podemos, se te agrada, ir conversando no papel, eu de cá e tu de lá, como diz a cantiga, descobrindo-nos um ao outro e aumentando, por patriotismo, as rendas do serviço postal. Se aí acharem que procedo mal retardando a visita que te devo, defende-me. E pede a d.Lili que me defenda também. Parece-me que d.Lili tem muita confiança em mim. Tu é que não tens nenhuma. Adoro-te, minha filha. Irei ver-te logo que me seja possível. Adeus. Vou sonhar contigo. Teu Graciliano. Palmeira, 20 de janeiro de 1928. Graciliano Ramos - Cartas de Amor a Heloísa
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