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Carlos Drummond de Andrade
 
 
 
O ATOR
Carlos Drummond de Andrade
Era um escravo fugido
por si mesmo libertado.
Meu avô foi à Mata
vender burro brabo fiado.
Chega lá, deita no rancho
para pitar descansado.
Duzentas, trezentas léguas
em macho bem arreado,
por muito que um homem seja
de ferro, fica estrompado.
“Vou dormir, sonhar meu sonho
de cobre e mulher trançado.
Por favor ninguém me amole
que trago dependurado
no arção da sela meu coldre
com pau-de-fogo. Obrigado.
“ Dormir tão cedo, meu amo?
se no rancho do outro lado
do rio tem espetáculo
que há de ser de vosso agrado.
Faz três dias ninguém cuida
na roça e no povoado
senão de ver esta noite
A Vingança do Passado.
Nem mais se recorda o velho
que estava mesmo pregado
Calça bota, arrocha cinto
e já se vê preparado.
De noite, à luz do candeeiro,
o drama tem outra face.
É como se à letra antiga
outro valor se juntasse.
O rosto do ator imerge
de repente na penumbra
e uma pungência maior
entre cangalhas ressumbra.
Metade luz e metade
mistério, a peça caminha
estranha. Dormem lá fora
a tropa e a besta-madrinha.
Na noite gelada a história
fala de nobres de Espanha
e do dote de uma virgem
conspurcada pela sanha
caprina de Dão Fernando.
E depois de mil malícias
o vil exclama: “Calor,
ai calor que abrasa um conde!”
“Que ouço? Que fuça é esta?”
Meu avô salta do banco.
O fidalgo enxuga a testa
que a luz devassa, mostrando
a estelar cicatriz
do seu escravo fugido
bem por cima do nariz.
Empurrando a uns e outros,
meu avô acode à cena
e brandindo seu chicote
(pois anda sempre com ele
em roça, brajão ou vila)
fustiga o conde, sem pena:
“Bacalhau, ai bacalhau
que te abrase o rabo, diabo.
Acaba com esta papeata
senão sou eu que te acabo.”
Era uma vez um artista
pelo berço mui dotado.
Ficou a noite mais triste
na tristidão do calado.
Cada qual se retirando
achava bem acertado.
Cumpre-se a lei. Está escrito:
a cada um o seu gado.
Para um escravo fugido
não há futuro, há passado,
pelo quê lá vai o conde
tocando burro e vigiado.
A tropa vai caminhando
pelo Segundo Reinado.