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O ATOR Carlos Drummond de Andrade Era um escravo fugido por si mesmo libertado. Meu avô foi à Mata vender burro brabo fiado. Chega lá, deita no rancho para pitar descansado. Duzentas, trezentas léguas em macho bem arreado, por muito que um homem seja de ferro, fica estrompado. “Vou dormir, sonhar meu sonho de cobre e mulher trançado. Por favor ninguém me amole que trago dependurado no arção da sela meu coldre com pau-de-fogo. Obrigado. “ Dormir tão cedo, meu amo? se no rancho do outro lado do rio tem espetáculo que há de ser de vosso agrado. Faz três dias ninguém cuida na roça e no povoado senão de ver esta noite A Vingança do Passado. Nem mais se recorda o velho que estava mesmo pregado Calça bota, arrocha cinto e já se vê preparado. De noite, à luz do candeeiro, o drama tem outra face. É como se à letra antiga outro valor se juntasse. O rosto do ator imerge de repente na penumbra e uma pungência maior entre cangalhas ressumbra. Metade luz e metade mistério, a peça caminha estranha. Dormem lá fora a tropa e a besta-madrinha. Na noite gelada a história fala de nobres de Espanha e do dote de uma virgem conspurcada pela sanha caprina de Dão Fernando. E depois de mil malícias o vil exclama: “Calor, ai calor que abrasa um conde!” “Que ouço? Que fuça é esta?” Meu avô salta do banco. O fidalgo enxuga a testa que a luz devassa, mostrando a estelar cicatriz do seu escravo fugido bem por cima do nariz. Empurrando a uns e outros, meu avô acode à cena e brandindo seu chicote (pois anda sempre com ele em roça, brajão ou vila) fustiga o conde, sem pena: “Bacalhau, ai bacalhau que te abrase o rabo, diabo. Acaba com esta papeata senão sou eu que te acabo.” Era uma vez um artista pelo berço mui dotado. Ficou a noite mais triste na tristidão do calado. Cada qual se retirando achava bem acertado. Cumpre-se a lei. Está escrito: a cada um o seu gado. Para um escravo fugido não há futuro, há passado, pelo quê lá vai o conde tocando burro e vigiado. A tropa vai caminhando pelo Segundo Reinado.
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